Neve Visual-I
Perco-me pelas ruas, apesar de fazer demasiado calor para estas deambulações sem rota. Mas não consigo evitar, a inquietação é forte, mais exigente que o desejo de água e sombra fresca. Temo ficar desidratada, só porque sei que quando procurar o refúgio no sono me arrisco a ver vaguear dentro dos olhos salpicos de cores brilhantes incansáveis, em vez daquele preto silencioso e profundo.
Ainda faltam quarenta e cinco minutos até ao meu encontro. Não me apetece ter que me desviar do acaso e olhar para o mapa, nem me apetece olhar para a tabuleta que diz o nome da rua, não me quero localizar. Revejo a hora no relógio, procuro um outro relógio na rua, na montra da Farmácia, a hora e o dia fogem a vermelho. Tenho o relógio adiantado dez minutos, mas a hora é certa, o dia também, não me enganei na data. Ainda não perdi nada.
Aproveito para me ver: cabelo colado à cabeça, costas manchadas de suor, devia ter passado as calças, o lápis dos olhos escorre-me pelo rosto. Experimento um sorriso na montra, um teste de confiança rápido. Desolador.
Durante a meia hora seguinte acelero o passo. Espero ainda ter tempo de compor a máscara na casa de banho do café, nivelar os níveis de cafeína e ensaiar uma pose natural de mulher segura, interessante e profissional.
Cruzo as pernas, tiro a agenda da mala, peço também uma água, acendo um cigarro. Cheguei primeiro e por pouco ia tendo tempo de desistir e ir embora. Já as pernas se preparavam para ficarem paralelas quando uma voz, sem que a tivesse visto a aproximar, chegou.
Ultimamente, acordar é um suplício, não é bem o acordar, é mais o encontrar o argumento certo para me convencer a abandonar o leito. O corpo fica dormente debaixo do lençol, como se aquela capa tivesse magia, a de se transformar num escudo protector contra a realidade. É como se dentro dela a dormência fosse justificação para a inacção, uma justificação maior. Quando estou envolvida na sua doce inconsciência, parece-me possível defender todos os atrasos. Parece-me viável dizer a quem quer que seja que me faltam forças para cumprir isto ou aquilo, isto ou aquilo, porque é tudo: isto ou aquilo. Claro que invento sempre uma desculpa mirabolante, da qual me vou tentando convencer, até chegar ao lugar onde sou impacientemente esperada. A verdade nunca serve de justificação, infelizmente. Sinceramente não percebo porquê, às vezes sinto que nas questões do espertar ninguém é humano, a não ser eu.
Mas hoje, consegui acordar horas antes de ser esperada, não me atrasei. Uma parte de mim rejubilou-se pelo sucedido, sentiu que era possível sentir energia, motivação, outra parte, lembrou-se que não era a primeira vez e que sempre, bem, o habitual, é o rasgo aberto de entusiasmo e depois a gasta vontade de sempre. Mesmo assim, o optimismo acostumado, aquela gana que me dá quando decido ser outra pessoa, pontual, cumpridora, determinada, esquecendo-me que vou sempre dar à maravilha na terra que sou e que não me resigno de ser.
Tive ainda tempo de ir ao mercado de La Boqueria, de me perder nas cores da fruta e de me sentir alimentada, mais pelo ver do que pelo comer. De sentir, que inteligentes são os espanhóis e que bem arrumam a fruta.
E a manhã, nem tinha bem acabado, se tivermos em consideração que os espanhóis almoçam longe da uma da tarde. Por isso, de acordo com a teoria empírica, de que a tarde começa a seguir ao almoço, temos manhã! Acordei de manhã, fiz tudo o que era suposto fazer de manhã, apesar de ter juntado o almoço ao pequeno-almoço.
Já me atrasei para tanta coisa, já desisti de milhentas outras tantas, que não percebo porque fiquei. Talvez por ser portuguesa, por estar em fuga, por não me apetecer já trabalhar em bares, principalmente em sítios onde nem sei bem que tipos de café bebem. Por precisar desesperadamente de dinheiro.
Talvez tenha marcado aquele inusitado encontro porque não me queria assumir imediatamente como…
0 Comments:
Post a Comment
<< Home