Sunday, January 04, 2015

1, sábado, três


Foi como se a vontade de rejeição a impelisse.
Teve que sentir uma vez mais as entranhas a doer, enquanto o ouvia dizer que o amor perdia as suas folhas ao vento e que cada vez mais o tempo se fundia harmoniosamente com a ausência dela.

Sunday, July 13, 2014

Meu bebé



Meu menino,
meu menino pequenino, meu bebé...
Não fazes ideia de como sinto a tua falta, apesar de teres sido quase “só” a minha barriga que crescia. Mas sabes, era só a minha barriga que permitia ver-te e como esta crescia pensava que estavas bem e o papá também pensava a mesma coisa.
Sabes, todos os dias a mamã cantava para ti, com a afinação que podia, mesmo quando estava triste com outras coisas, para que tu soubesses que estava tudo bem. O papá é que é o cantor da família e ouvíamo-lo muitas vezes no trabalho da mamã, porque ele é tímido e tinha vergonha de cantar para ti através da minha barriga, mas sei que te dedicou mil canções. A nossa canção, minha e tua, era a Estrela d`alva do Zeca Afonso, ouviste-a muitas vezes em versões malucas... Irias aprender com o tempo que não podias confiar na tua mãe para saberes as letras das músicas. Canto-ta todos os dias, ainda hoje e digo-te: ouvirás cantando nas alturas, trovas e cantigas de embalar, trovas e cantigas muito belas, dorme meu menino a estrela d`alva.
Recebeste muitas festas, muitas, muitas e o papá todos os dias te dava um beijo na barriga. Foram mais festas minhas, porque eu é que andava contigo de um lado para o outro e sempre que podia, exibia-te. Mais tarde, irias ter vergonha de mim, por te estar sempre a exibir, mas sabes meu menino, tinha tanto orgulho em ser tua mãe, que a apesar de seres tão pequenino já mal me cabias no peito.
Meu pequenino, meu bebé, meu filho, no dia 17 de um mês disseram-nos que não vivias. Nós estávamos à espera de te ver bem. Queríamos conhecer-te pela primeira vez mais de perto. Mas não foi isso que aconteceu, meu amor. O meu coração parou. O nosso coração parou.
Só não me desfiz naquele momento por causa do teu papá, que estava destroçado ao meu lado, a tentar lidar com a dor dele e com a minha. Choramos tanto, filho.
Mas eu tinha-te ainda dentro de mim e não podia ser e no dia a seguir tive que ir para o hospital. Pelos vistos estavas tão agarrado a mim, como eu estava a ti, eras um menino da mamã, meu bebé.
Foi muito violento, passei pelo mesmo que teria que passar se te trouxesse à vida, mas apesar de ter estado doze horas com contrações, mesmo assim, tiveram que te arrancar de mim.
Ainda te procurei nos destroços, para me poder despedir de ti, mas não te encontrei. Não sei como me despedir de ti.
O papá sempre que o deixaram esteve ao nosso lado.
Não cheguei a conhecer-te filho, mas amo-te muito, quero-te muito, devíamos ter tido tempo para isso, para nos conhecermos, para brincarmos, para nos chatearmos, para saber se ias ter o nariz do pai e as orelhas da mãe ou as tuas próprias, tempo para aprender a ser mãe contigo, para não sentir este vazio, este continuar da vida patético.

Friday, January 17, 2014

Tenho um buraquinho na barriga, que é de um bocado que me cortaram quando me separaram da minha mãe. Ninguém me perguntou a opinião e na altura fartei-me de chorar. Mas confesso, foi uma decisão astuta, porque apesar de gostar muito dela, temos gostos muito diferentes.
Com o passar dos anos fui vendo reflexos no espelho dissemelhantes, mas o buraquinho na barriga está exatamente igual. O mesmo tamanho, a mesma textura, a mesma cor. Parece que existe para me lembrar que já estive ligada e agora já não estou. Estive para ali, a carregar, como um telemóvel e agora dependo só da minha habilidade para me manter conectada.
E não é muita, vou-me abaixo muitas vezes, desligo, não funciono bem na rede. Mesmo com a minha mãe, que é como uma mãe para mim, perco muitas vezes o sinal.
Temos ligações com o mundo muito… somos muito distintas. Muito distantes. Perdoei-lhe o buraquinho na barriga, a separação violenta à nascença. Mas não lhe consigo desculpar outras distâncias.
Dizes que me trouxeste para aqui e por isso queixaste de que a separação é dura. Mas desde que nasci que sinto que só tenho familiares distantes. Desde pequena que tenho este instinto perverso de que não te pertenço. No entanto, quero-te teoricamente, mãe. Mas fizeste-me incompleta. Esqueceste-te dos retoques, das arestas, de limar as imperfeições.
Mas na realidade não me dizes nada, vais-te queixando por telefone que saí de casa há quinze anos e nunca mais voltei. Com a exceção de duas vezes por ano e por duas noites de cada vez. Mas nem disso falas, vais dizendo só em silêncios que te começa a faltar a memória de quando te lembravas de mim e vais-te recordando dos esforços que foi criar-me sozinha. Vou-te parecendo cada vez mais mal-agradecida, vais ficando cada vez mais invejosa dos filhos dos outros que nunca saíram de casa ou que voltam amiúde.

Eu também não te digo o que sinto. Não te falo das arestas, nem dos retoques, do telemóvel, do buraquinho, nem de nada. Bem sei que o trajecto que tenho vindo a fazer é ininteligível e pouco tem a ver com a realidade dos teus dias. Temos as duas que nos ficar por um “ela é assim”.

Saturday, March 02, 2013

Desculpa Tuqui

Sou o género de pessoa que pede desculpa ao gato, quando acha que lhe lhe fez uma festinha um pouco destrambelhada às 5 da manhã. Ele olhou e continuou a dormir. Acho que me desculpou.

Sorrir



Ponho fita-cola nas bocas, nas bocas de toda a gente, cansa-me vê-las mexer sem parar, sem tréguas nem respeito por quem quer ver apenas lábios calmamente sobrepostos. Tento fazê-lo discretamente, porque ninguém gosta de se sentir menos interessante, menos atraente de pensamentos. Mas nestes dias, em que o próprio tempo se encontra entediado, não encontro alternativa. Silencio tudo o que a imaginação permite, os carros, os passos, os gatos. Transformo a minha vida num filme mudo, para poder ter paz. Espero conseguir sobreviver a mais um dia de tédio, em que as horas que me são roubadas pelo trabalho, me roubam tudo e me deixam sem nada. Treino um sorriso que é pesado, como alteres de cinquenta quilos, os treze músculos que são necessários para uma máscara agradável, pesam tanto que choro do esforço mas concentro-me tanto que acabo por conseguir. Um sorriso, é só o que é preciso para que a gente continue a sua marcha pacífica e natural e assim, ninguém repara que foi calado por ti, que estás doente e triste e que te falta vida.

A Fábrica do Nada; Infância; Amor; Pequenas coisas




A Fábrica do Nada é famosa na região, por ser a principal empregadora do sítio, mas também é conhecida em todo o país, apesar do grosso do seu negócio se dedicar à exportação. Podemos dizer que esta fábrica é um caso raro de sucesso numa altura de grave crise económica. Ninguém sabe ao certo a data da sua fundação, mas calcula-se que já existisse antes da própria revolução industrial ter acontecido.
O segredo da longevidade e êxito deste negócio está no produto que comercializa, que se vende embrulhado numa embalagem de grande importância e de prioridade máxima, ainda que o conteúdo destes embrulhos seja maioritariamente bolinhas de esferovite, folhas de jornal e celofane, meticulosamente colocados para que o seu interior não se parta nem se evapore.
Chove constantemente em cima da Fábrica do Nada, um fenómeno deveras interessante, porque das 50 chaminés não sai nada e os estudos ambientais exaustivos que foram levados a cabo por Associações Ambientais independentes não revelam nenhuma substância tóxica, aliás substância nenhuma e por isso nunca pôde ser encerrada nem nunca foi decretado estado de alerta para a saúde da população e trabalhadores. Mas a realidade é que a chuva não pára e por vezes, em alturas de produção mais intensa, vêem-se violentas trovoadas.
As duas centenas de trabalhadores da fábrica assinaram um acordo de confidencialidade e por isso não é possível saber como se processa o fabrico do produto. Mas numa das visitas guiadas que são feitas à fábrica pude ver os trabalhadores alinhados, numa grande linha de montagem, com os braços dentro de uma bolha gigante, a gesticular, como se estivessem a dirigir uma orquestra de grandes dimensões. Não se pode dizer que estão descontentes com o seu trabalho, não ouvi nenhum a queixar-se da sua sina laboral.
O patrão é um homem de poucas falas, alto, muito alto e com uma idade difícil de definir, com uma cabeça um pouco maior que o normal e com muito cabelo, mas nada que prenda o olhar tempos sem fim, apenas uma pequena aberração e não um grande motivo para se montar uma feira circense à volta dele,  mas uma coisa é certa, deve adorar o que faz, porque passa os dias lá dentro, também ele a dirigir, no seu posto, igual a todos os outros, a sua própria orquestra, com um afinco exemplar.
Não pude ver o produto final, só a área de despacho, onde estavam as várias embalagens meticulosamente amontoadas, com etiquetas que descriminavam o que cada uma continha: P1 – Infância – Boomerang; P2- Amor – Boomerang; P3 – Trabalho – Boomerang; P4 – Saúde – Boomerang; P5 – Culpa – Boomerang; P6 – Pequenas coisas- Boomerang e por aí fora. Não consegui memorizar todas, mas sei dizer com bastante certeza que todas tinham a palavra boomerang escrita.
Quando perguntei à pessoa responsável da secção o que significava a descrição e o que estava lá dentro, sorriu muito, com um dos sorrisos mais abertos e sinceros que havia visto, disse-me que não sabia e que o melhor era não saber. Que segundo tinha apurado, não se tratava de nada ilegal, mas que tinha ouvido que era algo parecido com pipocas ou azeitonas, que quando se experimentava um, só com muito custo se conseguia parar e que havia mesmo casos extremos de overdose que levavam à morte. Por isso, preferia levar a sua vida de funcionária ignorante e limitar-se a fazer seguir as encomendas enquanto ouvia música pop no seu leitor de mp3 e ia petiscando umas bolachas de chocolate com pepitas de chocolate.
Não havia nenhuma Loja do Nada na região e todas as pessoas com que conversei, que viviam nas imediações da Fábrica, sabiam tanto como eu. Aparentemente todas partilhavam da opinião da empregada baixinha de ar feliz que tinha conhecido e com a qual falara. Uns diziam que tinham ouvido que era semelhante ao plástico bolha, que quando se rebenta uma bolhinha de ar se tem que continuar até POP, POP tudo e que o melhor era não fazer como o gato.
Mais tarde, fui ao site da Fábrica do Nada, tentar fazer uma encomenda, selecionei algumas das referências que tinha visto, carreguei em OK, coloquei a minha morada, OK, nada de Referencias de Pagamento, nada de preços, achei estranho mas continuei a preencher todos os campos necessários, OK novamente e depois apareceu uma janela a dizer: QUER CONTINUAR; eu OK; TEM MESMO A CERTEZA QUE QUER CONTINUAR; eu ri e pensei: que raio de estratégia de negócio; OK; OK; A sua encomenda chega em 3, 2, 1 e tocam à porta. - Que eficiência! Pensei. Abri, levei a carteira para poder pagar, mas a encomenda estava sozinha no chão e nada de carrinha, nada de homens de entrega. Entrei, fechei a porta e fui para a sala. Comecei por abrir o pacote calmamente, mas eram tantas camadas, tantos invólucros que acabei por rasgar o embrulho como uma criança no dia de Natal.
O último celofane tinha escrito em letras garrafais: TEM MESMO, MESMO, MESMO, MESMO A CERTEZA. Tinha mesmo, mesmo, mesmo todos estes MESMO escritos. Sem pensar, rasguei-o e finalmente vi. Encomendei o P1, o P2 e o P6. A consistência era parecida ao suspiro, derreteram-se na boca e foram parar diretamente à minha cabeça.  Eram pensamentos em forma de boomerang. Pensamentos que vão e veêm, que tanto nos convencem que são essenciais e os mais acertados, como no minuto a seguir nos convencem do contrário. Mas que nos mantêm numa maratona incansável. Pensamentos que corroem o nosso cérebro e formam labirintos de onde é impossível escaparem. E eu fiquei a assistir de fora para dentro, como se estivesse a fazer zapping, grudada. E eu já tinha visitado o site da Fábrica do Nada, mas entretanto tinha-me esquecido, tinha encomendado o P53- Fábrica do Nada - Boomerang. A minha consciência era um suspiro.

Monday, February 25, 2013

A cama



Existe um Caminho cinzento, algures, na cama dos que dormem de mais ou de menos, é como um portal, que nunca se abre aos que repousam com conta e medida para os cansaços do dia, e que se revela, aos que por lá estão para ficar ou para os que estão sempre prontos a partir. É que a cama é um ser caprichoso, e quem só a vê como inocentes camadas de estrado, colchão, lençóis e cobertores perfumados está muito enganado. A cama precisa de amor, a cama precisa de tantos mais tipos de amor, quanto mais forem as suas camadas, daí ela precisar de mais amor no Inverno, que é quando o caminho cinzento se insinua mais e atraia mais ocupantes a entrar e menos no Verão, quando está menos sobrecarregada com camadas.
 A Menina Triste era triste e não sabia, mas todos a conheciam como a Menina Triste, apesar de esse não ser o seu nome principal, e de já estar crescida demais para ser chamada menina. Bem, pelo menos crescera tanto quanto a sua herança genética o permitira. Às vezes a Menina Triste, pela falta de melhor nome,  sorria,  e era como se o sol entrasse em todos os caminhos e enchesse todos os caminhos de luz, mas era uma alegria demasiado alta, daquelas capazes de causar escaldões, e nesses casos, a cama, apesar de ter menos camadas, não se deixava enganar, porque percebia que o calor era artificial e criava ela própria as camadas necessárias para que a Menina Triste acedesse ao Caminho.
Isto não quer dizer que todas as camas são malvadas, predadoras a farejar os níveis de sono ideais para cada pessoa, as camas normalmente são seres bastante cordiais, solícitos, discretos, que ouvem, veem, cheiram e não contam! Mas apesar de serem tão bons amigos e hospitaleiros algumas podem, repito, algumas podem ser perigosas.
A cama da Menina Triste era uma cama banal. Pelo menos olhada de fora. Por dentro era um mundo, um mundo onde não era necessário comer, um mundo onde muito raramente era necessário ir à casa de banho, um mundo onde não havia barulho, um mundo onde a Menina Triste se sentia protegida e de onde não queria sair. O caminho cinzento que se abria quando ela lá estava não era lá muito agradável, e ela percorria o caminho, pé ante pé, com receio, e depois voltava para a sua almofada e dormia. Tinha pesadelos onde dormia, no mundo dos sonhos cinzentos, mas depois abria os olhos e percebia que estava na sua cama. A Menina Triste gostava da sua cama, apesar de lá sentir sentimentos contraditórios. Mas sempre era melhor que o mundo que vai para além do tapete e dos chinelos. Era o que a Menina Triste sentia.
A Menina Triste era triste e não sabia. A cama não tinha culpa, esta preferiria ser mil vezes palco de mil amores, de gemidos, de pulos, de roupa jogada ao acaso pela ansiedade da festa, de petiscos à meia-noite, de desejo, de parto, de ser acordada por crianças com medo de trovoada… A cama estava triste, por ser caminho cinzento de coração que não sabe como se curar. De coração adormecido pelo medo. De alma doente. De alma que dorme e a ocupa tempo demais ou de menos. Mas a cama sentia que tinha que acolher quem a embonecava e a vestia, em vez de a deixar nua, e mostrava o seu desagrado pelo mau uso, abrindo o Caminho. A cama tinha boas intenções. A cama fazia o que podia.

Sunday, January 27, 2013

Um desejo...

...uma boa conversa ao som de vinho tinto

Wednesday, January 16, 2013

16 de janeiro de 2013



Caríssima,

Encontro-me ultimamente tão zangada que mal encontro espaço para os pequenos prazeres. É uma zanga tão antiga, que não percebo porque me acossa tão severamente. Sinto-me uma filha sem pais, uma mal amada de origem, uma ilha.
Mas porque estou eu assim? Não passaram já anos suficientes e não sou eu uma mulher feita e madura? Porquê agora?
De todas as celeumas que me assaltam o presente, porque não escolho eu uma delas para ser alvo dos meus cuidados e apreensões? Porque fui eu buscar uma coisa tão antiga para preencher os meus frágeis pensamentos.
Por vezes sinto-me a flutuar, sobrevoo a vida sem nunca lhe tocar, como se estivesse num balão quase vazio e prestes a rebentar. Rezo a uma divindade que me deixe cair e peço a outra para me deixar continuar e por vezes quero explodir com o balão, até ficar reduzida a uma partícula microscópica.
Não tenho eu pai e mãe?! Não será isso já um grande feito: não me terem abandonado numa soleira qualquer. Não será já dádiva suficiente estarem ainda vivos e me procurarem ainda que amiúde? Não tenho eu ainda tempo de estreitar os laços afetivos com eles quando estiverem dependentes de mim na velhice?
Porquê portanto esta tonta angústia de amor não cumprido!
Talvez pura e simplesmente não saiba amar. Não o soube aprender na idade certa. Naquela janela estreita de tempo em que o ser humano define o seu caracter, ainda que inconscientemente e, a partir daí, todas as tentativas foram meramente exercícios racionais infrutíferos.
As vezes pergunto-me como irei ser capaz de ser uma boa filha, dar-lhes os cuidados necessários quando cheirarem a velho e a vícios acumulados e a rezingues moribundos. Se eles mesmos não foram capazes de cuidar de um ser humano novo, pequenino e a cheirar a primavera e possibilidades. Isto tudo me apoquenta, minha amiga. E não sei se não será melhor rebentar no Verão da minha vida, enquanto o Inverno deles ainda não chegou. Explicar-lhes isto, esta dor, esta pena, este silêncio tão grande.
Despeço-me mais uma vez com lamúrias, mas é-me impossível escrever-te sem te dar conta do estado da minha alma.
Fala-me de ti na volta desta carta, dos nosso amigos, dos teus anseios.
Eternamente tua,
C.