Monday, February 25, 2013

A cama



Existe um Caminho cinzento, algures, na cama dos que dormem de mais ou de menos, é como um portal, que nunca se abre aos que repousam com conta e medida para os cansaços do dia, e que se revela, aos que por lá estão para ficar ou para os que estão sempre prontos a partir. É que a cama é um ser caprichoso, e quem só a vê como inocentes camadas de estrado, colchão, lençóis e cobertores perfumados está muito enganado. A cama precisa de amor, a cama precisa de tantos mais tipos de amor, quanto mais forem as suas camadas, daí ela precisar de mais amor no Inverno, que é quando o caminho cinzento se insinua mais e atraia mais ocupantes a entrar e menos no Verão, quando está menos sobrecarregada com camadas.
 A Menina Triste era triste e não sabia, mas todos a conheciam como a Menina Triste, apesar de esse não ser o seu nome principal, e de já estar crescida demais para ser chamada menina. Bem, pelo menos crescera tanto quanto a sua herança genética o permitira. Às vezes a Menina Triste, pela falta de melhor nome,  sorria,  e era como se o sol entrasse em todos os caminhos e enchesse todos os caminhos de luz, mas era uma alegria demasiado alta, daquelas capazes de causar escaldões, e nesses casos, a cama, apesar de ter menos camadas, não se deixava enganar, porque percebia que o calor era artificial e criava ela própria as camadas necessárias para que a Menina Triste acedesse ao Caminho.
Isto não quer dizer que todas as camas são malvadas, predadoras a farejar os níveis de sono ideais para cada pessoa, as camas normalmente são seres bastante cordiais, solícitos, discretos, que ouvem, veem, cheiram e não contam! Mas apesar de serem tão bons amigos e hospitaleiros algumas podem, repito, algumas podem ser perigosas.
A cama da Menina Triste era uma cama banal. Pelo menos olhada de fora. Por dentro era um mundo, um mundo onde não era necessário comer, um mundo onde muito raramente era necessário ir à casa de banho, um mundo onde não havia barulho, um mundo onde a Menina Triste se sentia protegida e de onde não queria sair. O caminho cinzento que se abria quando ela lá estava não era lá muito agradável, e ela percorria o caminho, pé ante pé, com receio, e depois voltava para a sua almofada e dormia. Tinha pesadelos onde dormia, no mundo dos sonhos cinzentos, mas depois abria os olhos e percebia que estava na sua cama. A Menina Triste gostava da sua cama, apesar de lá sentir sentimentos contraditórios. Mas sempre era melhor que o mundo que vai para além do tapete e dos chinelos. Era o que a Menina Triste sentia.
A Menina Triste era triste e não sabia. A cama não tinha culpa, esta preferiria ser mil vezes palco de mil amores, de gemidos, de pulos, de roupa jogada ao acaso pela ansiedade da festa, de petiscos à meia-noite, de desejo, de parto, de ser acordada por crianças com medo de trovoada… A cama estava triste, por ser caminho cinzento de coração que não sabe como se curar. De coração adormecido pelo medo. De alma doente. De alma que dorme e a ocupa tempo demais ou de menos. Mas a cama sentia que tinha que acolher quem a embonecava e a vestia, em vez de a deixar nua, e mostrava o seu desagrado pelo mau uso, abrindo o Caminho. A cama tinha boas intenções. A cama fazia o que podia.