Lengalenga
O céu está ensarilhado, quem o ensarilharia, aquele que o ensarilhou, grande ensarilha dor seria.
Já foi tudo dito, escrito e feito. Não tenho pretensões de acrescentar nada. Não quero ser original (não acredito que tal seja possivel). No entanto, como existo, estou aqui.
O céu está ensarilhado, quem o ensarilharia, aquele que o ensarilhou, grande ensarilha dor seria.
Estou farta de ser razoável. Farta da mediocridade que se alojou nos meus ossos como cárie.
Eu envelheço, todos os dias, sem excepção. As rugas de expressão que estão no meu rosto não foram marcadas pelo sorriso, mas pela angústia. Que se foda isto, que se foda a puta de vida que escolhi. Foi para isto que me levantei hoje? E ontem levantei-me porquê? Para quê? Para ver acumular a frustração de ser só isto? Tenho esta miséria de espírito adormecido, alheio ao mundo, que dá voltas sobre o pó e as cinzas do que me tornei num eterno retorno ao vazio, o mesmo vazio de sempre…
Se me pudesse representar num palco fazia-me metáfora de excremento, de uma merda qualquer regida por leis monstruosas. De que preciso mais? Sou livre, porra. Fiz tudo para ser livre e agora a liberdade amarra-me. Que será de mim amanhã? Que será de mim daqui a cinco minutos se o meu corpo decidir descansar e vergar ao cansaço que me assola? Morro? É isso? Para quê? Ou será imaginação e estou só a dormir?
Estou a ser fatalista. É um facto. Mas tenho que me exceder para voltar à razão, preciso de me confessar com exagero para obter uma absolvição maior do que o pecado que cometi. Sinto-me um nada, um grande nada, e esta é a verdade
Vocês não sabem o meu nome. De todos os nomes que podia ter, escolheram-me o mais fraco, o que se deixa arrastar pelas mais débeis influências e eu vesti-o. Mascarei-me com o meu nome. Talvez se o mudar, alguma coisa maravilhosa aconteça.
Vejo-o passar todos os dias pela minha casa, todos os dias à mesma hora. Deve viver num apartamento nas traseiras do meu. Tem um olhar vazio, uma cara sem expressão, um andar mecânico. Tresanda a abandono, parece que alguém se esqueceu dele e com isso ele também se esqueceu que existia. Invejo-o. Primeiro, porque me tem a mim, faço-o ser pessoa, invento-lhe um sorriso, uma história, uma profissão e afago-lhe os cabelos pretos à distância e embalo-o em sonhos.
Talvez um dia me encha de coragem e lhe diga “Olá” e ele perceba.
Evito olhar nos olhos dos meus vizinhos, tenho um medo aterrador que reparem que vivo sozinha e que me batam à porta para pedir açúcar. Nunca cheguei a comprar açúcar, ponho sempre na lista e esqueço-me sempre, já estou para comprar faz um ano, desde que me mudei para a minha casa.
A minha mãe liga-me todos os dias às 8.30, todas as manhãs desde que tenho memória que a primeira coisa que ouço é – Ainda na cama? És mesmo preguiçosa, saíste ao teu pai. – Um dia, morava ainda no apartamento de duas assoalhadas com ela, levantei-me às 6,45 da manhã, vesti-me silenciosamente e fiquei parada em frente à porta até às 8.30. Ela abre a porta, olha para mim com um ódio feroz e volta a fechar a porta. Nunca me perdoou por lhe ter quebrado a rotina. No dia a seguir, apesar de não ter sono, deixei-me ficar na cama e fingi que dormia.
Farto-me de trabalhar, sou a empregada de escritório mais competente, dizem-me. O advogado para quem trabalho gaba-me todos os dias, -Não sei o que fazia sem ti!
Sou discreta e silenciosa. Ele sabe que minto com perfeição à mulher dele quando, duas vezes por semana, sai para a escapadela com a loira oxigenada e com ar de… Mas quem sou eu para fazer juízos de valor.
Mantive uma relação de 6 meses com um homem casado, com um filho lindo, de caracóis dourados e cara de anjo. Seduzi-o ou… não sei bem, fui seduzida, manipulada, obrigada… não sei dizer não e nunca ninguém se tinha interessado por mim. Na escola, tive uma paixão secreta pelo meu colega de carteira. Estudámos juntos desde a primeira classe até ao 12º ano. Nunca desconfiou. Quando os nossos braços se tocavam acidentalmente durante a Primavera e eu sentia a pele dele a roçar na minha ficava toda arrepiada. Bons tempos…
Levo-me a sair todas as semanas às quartas e sextas. Vou ao cinema. Como pipocas e bebo uma Coca-Cola gigante, de um litro, sempre com cuidado porque não quero incomodar ninguém com o barulho.
A Cátia ligou-me, é a única pessoa que me telefona, limito-me a dizer “hum”, “ai sim” e “não me digas”, acho que ela me deve considerar um psicólogo económico, ouço-a até quase morrer de exaustão e não digo nada de mim, ela não pergunta e sinceramente também não sei o que havia de dizer.
Vou de férias este ano, até aos Açores, é a primeira vez que vou sair do país. Que disparate, é Portugal também, mas vou sair do continente. É ridículo que um vendedor nos faça sentir mal, tive que dizer que ia em negócios, a chata da mulher: - Ah, vai sozinha?
Vou. A viagem é só daqui a um mês, mas já comecei a fazer a mala, camisolas de manga curta, uma camisola de gola alta, não vá estar frio, meias, desodorizante… Quero que seja perfeito.
Voltei a sonhar com o Carlos, não sei se é o nome dele, mas para mim é Carlos.
-Carlos, és tu?
-Sim. Chega-te para lá, estou cheio de frio.
-Tens sempre os pés gelados, mete-os no meio dos meus.
Depois acordo à procura dele e ele nunca está.