Tuesday, March 29, 2011

Enquanto algumas pessoas procriam ou tentam procriar, eu limito-me a jogar solitário e a beber licor de alfarroba. Ainda hoje à tarde pensava no que me deixava feliz, cheguei à conclusão que era fumar e beber enquanto lia um bom livro. Afinal a felicidade é simples. Por mais fodida que esteja a minha vida, quando me permito momentos de descontracção encontro verdadeiro prazer neste acto. Afinal, talvez não esteja tudo perdido, a única questão é mesmo encontrar a literatura certa. Não sou muito cáustica. Os prazeres solitários são verdadeiramente revitalizantes no que me diz respeito. São também absolutamente concretizantes. Sou uma mulher simples, apesar de tudo.

Al Berto
Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Monday, March 28, 2011

Evidência

Fico muito confusa quando não tenho a certeza de nada.

The Make Up - Walking On The Dune

Sunday, March 27, 2011

Neve Visual-I

Perco-me pelas ruas, apesar de fazer demasiado calor para estas deambulações sem rota. Mas não consigo evitar, a inquietação é forte, mais exigente que o desejo de água e sombra fresca. Temo ficar desidratada, só porque sei que quando procurar o refúgio no sono me arrisco a ver vaguear dentro dos olhos salpicos de cores brilhantes incansáveis, em vez daquele preto silencioso e profundo.

Ainda faltam quarenta e cinco minutos até ao meu encontro. Não me apetece ter que me desviar do acaso e olhar para o mapa, nem me apetece olhar para a tabuleta que diz o nome da rua, não me quero localizar. Revejo a hora no relógio, procuro um outro relógio na rua, na montra da Farmácia, a hora e o dia fogem a vermelho. Tenho o relógio adiantado dez minutos, mas a hora é certa, o dia também, não me enganei na data. Ainda não perdi nada.

Aproveito para me ver: cabelo colado à cabeça, costas manchadas de suor, devia ter passado as calças, o lápis dos olhos escorre-me pelo rosto. Experimento um sorriso na montra, um teste de confiança rápido. Desolador.

Durante a meia hora seguinte acelero o passo. Espero ainda ter tempo de compor a máscara na casa de banho do café, nivelar os níveis de cafeína e ensaiar uma pose natural de mulher segura, interessante e profissional.

Cruzo as pernas, tiro a agenda da mala, peço também uma água, acendo um cigarro. Cheguei primeiro e por pouco ia tendo tempo de desistir e ir embora. Já as pernas se preparavam para ficarem paralelas quando uma voz, sem que a tivesse visto a aproximar, chegou.

Ultimamente, acordar é um suplício, não é bem o acordar, é mais o encontrar o argumento certo para me convencer a abandonar o leito. O corpo fica dormente debaixo do lençol, como se aquela capa tivesse magia, a de se transformar num escudo protector contra a realidade. É como se dentro dela a dormência fosse justificação para a inacção, uma justificação maior. Quando estou envolvida na sua doce inconsciência, parece-me possível defender todos os atrasos. Parece-me viável dizer a quem quer que seja que me faltam forças para cumprir isto ou aquilo, isto ou aquilo, porque é tudo: isto ou aquilo. Claro que invento sempre uma desculpa mirabolante, da qual me vou tentando convencer, até chegar ao lugar onde sou impacientemente esperada. A verdade nunca serve de justificação, infelizmente. Sinceramente não percebo porquê, às vezes sinto que nas questões do espertar ninguém é humano, a não ser eu.

Mas hoje, consegui acordar horas antes de ser esperada, não me atrasei. Uma parte de mim rejubilou-se pelo sucedido, sentiu que era possível sentir energia, motivação, outra parte, lembrou-se que não era a primeira vez e que sempre, bem, o habitual, é o rasgo aberto de entusiasmo e depois a gasta vontade de sempre. Mesmo assim, o optimismo acostumado, aquela gana que me dá quando decido ser outra pessoa, pontual, cumpridora, determinada, esquecendo-me que vou sempre dar à maravilha na terra que sou e que não me resigno de ser.

Tive ainda tempo de ir ao mercado de La Boqueria, de me perder nas cores da fruta e de me sentir alimentada, mais pelo ver do que pelo comer. De sentir, que inteligentes são os espanhóis e que bem arrumam a fruta.

E a manhã, nem tinha bem acabado, se tivermos em consideração que os espanhóis almoçam longe da uma da tarde. Por isso, de acordo com a teoria empírica, de que a tarde começa a seguir ao almoço, temos manhã! Acordei de manhã, fiz tudo o que era suposto fazer de manhã, apesar de ter juntado o almoço ao pequeno-almoço.

Já me atrasei para tanta coisa, já desisti de milhentas outras tantas, que não percebo porque fiquei. Talvez por ser portuguesa, por estar em fuga, por não me apetecer já trabalhar em bares, principalmente em sítios onde nem sei bem que tipos de café bebem. Por precisar desesperadamente de dinheiro.

Talvez tenha marcado aquele inusitado encontro porque não me queria assumir imediatamente como…

PERFILADOS DE MEDO


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…

ALEXANDRE O’NEILL

Thursday, March 17, 2011

um silêncio de quilómetros só pode ser compensado com
palavras milimétricas
A verdade é que uma mulher se pode afastar do seu blog, mas o seu blog nunca se afasta da mulher. É uma espécie de cachorrinho fiel, de olhos tristes, a ganir, num tom angustiado. Um milhafre ferido na asa. Um dói-dói a exigir um beijinho. Como a exigência da bica matutina ou a certeza da dor de cabeça para o resto do dia. É como cigarrinho a seguir ao almoço. O almoço a seguir a uma manhã longa. É tal e qual a necessidade de um banho demorado depois de exercício prolongado.
Tenho saudades do sobre-o-nada!
E quero muito que ele saia do coma.
Voltei, voltei
voltei de lá,
ainda ontem estava em... Hmmm, não estive em França
E agora, já estou cá!
Terummmm