Sunday, March 19, 2006

Não sei

A luz do sol faz brilhar a moeda de 10 cêntimos perdida no passeio. Imagino quanto troco miúdo já terei semeado. É divertido imaginar a quantia.
Já perdi um pouco de tudo: camisolas, lenços de assoar, livros e cassetes, pessoas, gatos, momentos (os momentos fazem-me falta).
Consumo o estranho objecto em que estou sentada, esta cadeira metálica da esplanada do meu café preferido que me consome também. O assento está quente, mais confortável. Mas quando me levantar sei que vai arrefecer, tal como a memória que amanhã vou ter de isto. Inalo o fumo do meu cigarro juntamente com o fumo da cidade.
Os objectos exercem um estranho poder magnético sobre nós. Não consigo calcular o espaço necessário para guardar todos os objectos nem a sua memória Felizmente sou leviana e descuidada e, apesar de estar sempre a perder, não me lembro de ter perdido nada que me faça falta.

P.S. Ângulo Saxofónico, o texto que aqui estava perdeu-se.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

O Ângulo só gosta do espaço público para pôr em cena a representação, por isso grita sempre debaixo dos lençóis e pinta as manchas de saliva com cores antes de os estender à janela.
O Ângulo corre sempre de um lado para o outro para fugir ao horror de uma origem ou de um fim lineares.
O Ângulo fala sempre consigo mesmo e ouve a sua voz a detonar entre as têmporas. E olha-se nú ao espelho imitando o símio que é. Mas veste sempre roupa lavada quando sai à rua.
O Ângulo não etiqueta as suas memórias - como no conto de Cortázar, deixa-as vaguear pela casa, mas não deixa de sentir medo porque no meio desse bestiário pode haver um jaguar.
O Ângulo não inveja aqueles que se contentam com o copo meio cheio nem os que sabem para onde vão, mas gosta de sentir os minutos a passar e sente uma certa soberba na forma como esbanja estupidamente o seu tempo limitado.
O Ângulo não que Ser hoje e já; o Ângulo não quer Ser se Ser significa exerce-se a si mesmo a tempo inteiro. Nisto, aproxima-se de Bartleby e de uma certa afirmação passiva. Por isto também, o Ângulo nunca pode ser o seu próprio copo de vinho e precisa sempre de quem lhe dê de beber.
O Ângulo deixa camisolas em todo o lado porque sabe que as camisolas, independentemente da medida, servem sempre a mais alguém. E o Ângulo gosta de sentir o suor alheio quando recupera a sua camisola porque tem frio.
O Ângulo pertence a todas as cidades pelas quais já passou e às quais chamou “suas”. Mas pertence-lhes porque elas lhe escaparam ao controle. O Ângulo gosta de se perder por ruas que não conhece para depois sentir o conforto de encontrar a porta de casa. Como os gatos.
O Ângulo não procura nada mas nunca fecha a porta. Mais do que o explorador, ele quer ser o vigilante. É a sua ética da hospitalidade.
Posto isto, tudo o que Ângulo perdeu lhe faz falta. Tudo, sem excepção, é insubstituível, ainda que nada indispensável. Pessoas, animais, objectos, fantasmas, deuses. O Ângulo torna-se temporariamente analógico quando, de tempos a tempos, se volta a apaixonar por estas coisas.

5:59 PM  
Anonymous Anonymous said...

Desde que não te percas a ti, tudo o resto é supérfluo: é lata, não carne. Não esquecendo, claro, que o que amas (desde o fumo do cigarro àqueles que te fazem rir com os olhos) fazem parte integrante de ti...
Também já perdi muita coisa. Mas também já não me recordo :)
Saltos para as costas (se eu saltasse agora esmagava-te no chão, e já ninguém via a moeda de 10 cêntimos)

8:05 PM  

Post a Comment

<< Home