Sunday, August 12, 2007

Trás-os- Montes

Não me considero feminista, pelo menos na acepção estereotipada da mulher masculina que queima soutiens e tem um ódio medonho aos homens. Sou dona do meu nariz, feminina e não tolero descriminações sexuais seja em que circunstancias for, bem excepto numa situação. Neste momento estou na terra em que os homens estão sentados à mesa e as mulheres os servem freneticamente, como se de príncipes e reis se tratassem. Eu faço parte do grupo que come no fim e que sob o olhar atento do meu avô vai servindo os homens sedentos da sua pinga, mudando os pratos e chegando isto e aquilo, porque desde há três madrugadas que as mulheres confeccionam todo o tipo de iguarias. Homens na sala, no trono, mulheres na cozinha de olho posto neles.
É uma tradição, que confesso, me custa a entender.

Este ano, tive a experiência mais enriquecedora de todas. Às vezes quando abro a boca saem questões inesperadas, ontem perguntei à minha avó se ela não teria gostado de ser livre uma vez na vida. Não estava preparada para a resposta até porque pensei que ela não fosse entender a perguntar, mas disse-me logo: realmente, filha, primeiro mandavam os meus pais em mim e logo começou a mandar o teu avô. Fiquei boquiaberta, a minha avó tem consciência de que nunca pode tomar uma decisão sua e muito menos uma daquelas ditas “egoístas” de se pôr em primeiro lugar.

Cinquenta anos de correrias porque o almoço tinha e tem que estar pronto pontualmente ao meio-dia e o jantar às sete e meia. A roupa lavada, as ceroulas na gaveta das ceroulas, as meias remendadas, o gado alimentado e a terra lavrada. No final da noite, a renda para os filhos, para a neta, a reza para nos proteger a todos.

A minha avó tem consciência de que nunca foi livre, que este é o destino dela, mas jamais optaria por outro, apesar de me dizer que o meu avô foi difícil de aturar… Há uns anos ganhou uma batalha, cortou o cabelo curto. O maior desgosto dela e do meu avô foi terem nascido “bezerros”, fruto de relações que nunca chegaram a casamento e terem passado por todo o escárnio que as mães deles passaram até encontrarem um homem quase “misericordioso” que as aceitasse com os rebentos. A minha avó teme muito por mim, já tive: 1, 2, 3, 4, …namorados e uma menina de bem, só no casamento… pois…

Esta aldeia perdida no meio de Trás-os-Montes é um rio de estórias. Ainda há pouco encontrei uma mulher incrível, parece-me igual desde que a conheço. Casou aos quarenta, esteve casada dezoito anos e pelo que a minha avó me disse foi um casamento muito tumultuoso com muitas coisas voadoras, esta não se submeteu totalmente, percebe-se porque é que esta senhora de oitenta e cinco anos continue com uma força inacreditável e suba a arvores, dobre as costas e apanha batatas, feijão e a azeitona que corre para fora do pano, vive sozinha com o Fadista o seu cão e única família. Como estava a dizer, cruzei-me com ela e cumprimentei-a, tinha acabado de saber de tudo, dei-lhe um beijo e ela em ritmo apressado vai em direcção a sua casa enquanto me diz: que Deus te guarde mais do que me guardou a mim.

Nunca fez luto, para escândalo da aldeia.

É muito difícil beber um café e fumar um cigarro por aqui. Apesar de já haver a consciência de que os tempos mudaram e que têm que mudar senão correm o risco de ver os jovens todos a abandonar a aldeia, sinto-me sempre uma criminosa, quando me sento na mesa do único café, puxo um cigarro e rezo que o eu avô não entre, ali estou protegida da minha avó, que jamais poria um pé sozinha dentro de tal tipo de antros.
Penso que isso explica o facto de estar há dois dias com sono e não conseguir fazer nada digno de registo… Daqui a nada vou servir os homens, upa, upa.
Ontem ajudei a comer a massa de uns bolos e fui expulsa da cozinha.

4 Comments:

Blogger Abssinto said...

Em primeiro lugar parabéns pelo saboroso texro, muito bem escrito e rico em pormenores! Se foste expulsa da cozinha aproveita para escrever mais textos como este, made in "terras do demo" como lhes chamou o Aquilino Ribeiro. O que eu queria mesmo deixar escrito é que isto se passa de norte a sul do país. A minha família é quase toda de Lisboa e verifico o mesmo em cada jantar de família ou festança de garagem. Mas não é um exclusivo nacional, eu diria que desde há milénios, em todas as culturas do Mundo, que as fronteiras entre homem-mulher estão bem definidas. Desce logo essa designação "mulher" enquanto o cônjugue tem uma definição "marido" muito mais nobre. O que vale é que MULHER é uma das palavras mais bonitas...

bj

2:49 PM  
Blogger Jo said...

conheço bem essa realidade e sempre me incomodou. Talvez até o que me incomode mais seja a resignação das mulheres, do que a realidade em si.
As tradições reinventam-se, acompanham o Tempo, ou então tornam-se assim, obsoletas.
Beijos solidários.

6:38 PM  
Blogger Unknown said...

Cala-te e passa-me a salada !

9:59 PM  
Blogger Mónica said...

ahhh como te compreendo! vai pra coimbra vai

6:44 PM  

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