Tenho um buraquinho na barriga,
que é de um bocado que me cortaram quando me separaram da minha mãe. Ninguém me
perguntou a opinião e na altura fartei-me de chorar. Mas confesso, foi uma
decisão astuta, porque apesar de gostar muito dela, temos gostos muito
diferentes.
Com o passar dos anos fui vendo
reflexos no espelho dissemelhantes, mas o buraquinho na barriga está exatamente
igual. O mesmo tamanho, a mesma textura, a mesma cor. Parece que existe para me
lembrar que já estive ligada e agora já não estou. Estive para ali, a carregar,
como um telemóvel e agora dependo só da minha habilidade para me manter
conectada.
E não é muita, vou-me abaixo
muitas vezes, desligo, não funciono bem na rede. Mesmo com a minha mãe, que é
como uma mãe para mim, perco muitas vezes o sinal.
Temos ligações com o mundo muito…
somos muito distintas. Muito distantes. Perdoei-lhe o buraquinho na barriga, a
separação violenta à nascença. Mas não lhe consigo desculpar outras distâncias.
Dizes que me trouxeste para aqui
e por isso queixaste de que a separação é dura. Mas desde que nasci que sinto
que só tenho familiares distantes. Desde pequena que tenho este instinto
perverso de que não te pertenço. No entanto, quero-te teoricamente, mãe. Mas
fizeste-me incompleta. Esqueceste-te dos retoques, das arestas, de limar as
imperfeições.
Mas na realidade não me dizes
nada, vais-te queixando por telefone que saí de casa há quinze anos e nunca
mais voltei. Com a exceção de duas vezes por ano e por duas noites de cada vez.
Mas nem disso falas, vais dizendo só em silêncios que te começa a faltar a
memória de quando te lembravas de mim e vais-te recordando dos esforços que foi
criar-me sozinha. Vou-te parecendo cada vez mais mal-agradecida, vais ficando
cada vez mais invejosa dos filhos dos outros que nunca saíram de casa ou que
voltam amiúde.
Eu também não te digo o que
sinto. Não te falo das arestas, nem dos retoques, do telemóvel, do buraquinho, nem
de nada. Bem sei que o trajecto que tenho vindo a fazer é ininteligível e pouco
tem a ver com a realidade dos teus dias. Temos as duas que nos ficar por um “ela
é assim”.