Friday, January 17, 2014

Tenho um buraquinho na barriga, que é de um bocado que me cortaram quando me separaram da minha mãe. Ninguém me perguntou a opinião e na altura fartei-me de chorar. Mas confesso, foi uma decisão astuta, porque apesar de gostar muito dela, temos gostos muito diferentes.
Com o passar dos anos fui vendo reflexos no espelho dissemelhantes, mas o buraquinho na barriga está exatamente igual. O mesmo tamanho, a mesma textura, a mesma cor. Parece que existe para me lembrar que já estive ligada e agora já não estou. Estive para ali, a carregar, como um telemóvel e agora dependo só da minha habilidade para me manter conectada.
E não é muita, vou-me abaixo muitas vezes, desligo, não funciono bem na rede. Mesmo com a minha mãe, que é como uma mãe para mim, perco muitas vezes o sinal.
Temos ligações com o mundo muito… somos muito distintas. Muito distantes. Perdoei-lhe o buraquinho na barriga, a separação violenta à nascença. Mas não lhe consigo desculpar outras distâncias.
Dizes que me trouxeste para aqui e por isso queixaste de que a separação é dura. Mas desde que nasci que sinto que só tenho familiares distantes. Desde pequena que tenho este instinto perverso de que não te pertenço. No entanto, quero-te teoricamente, mãe. Mas fizeste-me incompleta. Esqueceste-te dos retoques, das arestas, de limar as imperfeições.
Mas na realidade não me dizes nada, vais-te queixando por telefone que saí de casa há quinze anos e nunca mais voltei. Com a exceção de duas vezes por ano e por duas noites de cada vez. Mas nem disso falas, vais dizendo só em silêncios que te começa a faltar a memória de quando te lembravas de mim e vais-te recordando dos esforços que foi criar-me sozinha. Vou-te parecendo cada vez mais mal-agradecida, vais ficando cada vez mais invejosa dos filhos dos outros que nunca saíram de casa ou que voltam amiúde.

Eu também não te digo o que sinto. Não te falo das arestas, nem dos retoques, do telemóvel, do buraquinho, nem de nada. Bem sei que o trajecto que tenho vindo a fazer é ininteligível e pouco tem a ver com a realidade dos teus dias. Temos as duas que nos ficar por um “ela é assim”.