A Fábrica do Nada é famosa na
região, por ser a principal empregadora do sítio, mas também é conhecida em
todo o país, apesar do grosso do seu negócio se dedicar à exportação. Podemos
dizer que esta fábrica é um caso raro de sucesso numa altura de grave crise
económica. Ninguém sabe ao certo a data da sua fundação, mas calcula-se que já
existisse antes da própria revolução industrial ter acontecido.
O segredo da longevidade e êxito
deste negócio está no produto que comercializa, que se vende embrulhado numa
embalagem de grande importância e de prioridade máxima, ainda que o conteúdo
destes embrulhos seja maioritariamente bolinhas de esferovite, folhas de jornal
e celofane, meticulosamente colocados para que o seu interior não se parta nem
se evapore.
Chove constantemente em cima da
Fábrica do Nada, um fenómeno deveras interessante, porque das 50 chaminés não
sai nada e os estudos ambientais exaustivos que foram levados a cabo por
Associações Ambientais independentes não revelam nenhuma substância tóxica,
aliás substância nenhuma e por isso nunca pôde ser encerrada nem nunca foi
decretado estado de alerta para a saúde da população e trabalhadores. Mas a
realidade é que a chuva não pára e por vezes, em alturas de produção mais
intensa, vêem-se violentas trovoadas.
As duas centenas de trabalhadores
da fábrica assinaram um acordo de confidencialidade e por isso não é possível
saber como se processa o fabrico do produto. Mas numa das visitas guiadas que
são feitas à fábrica pude ver os trabalhadores alinhados, numa grande linha de
montagem, com os braços dentro de uma bolha gigante, a gesticular, como se
estivessem a dirigir uma orquestra de grandes dimensões. Não se pode dizer que
estão descontentes com o seu trabalho, não ouvi nenhum a queixar-se da sua sina
laboral.
O patrão é um homem de poucas
falas, alto, muito alto e com uma idade difícil de definir, com uma cabeça um
pouco maior que o normal e com muito cabelo, mas nada que prenda o olhar tempos
sem fim, apenas uma pequena aberração e não um grande motivo para se montar uma
feira circense à volta dele, mas uma
coisa é certa, deve adorar o que faz, porque passa os dias lá dentro, também
ele a dirigir, no seu posto, igual a todos os outros, a sua própria orquestra,
com um afinco exemplar.
Não pude ver o produto final, só
a área de despacho, onde estavam as várias embalagens meticulosamente
amontoadas, com etiquetas que descriminavam o que cada uma continha: P1 –
Infância – Boomerang; P2- Amor – Boomerang; P3 – Trabalho – Boomerang; P4 –
Saúde – Boomerang; P5 – Culpa – Boomerang; P6 – Pequenas coisas- Boomerang e
por aí fora. Não consegui memorizar todas, mas sei dizer com bastante certeza
que todas tinham a palavra boomerang escrita.
Quando perguntei à pessoa
responsável da secção o que significava a descrição e o que estava lá dentro,
sorriu muito, com um dos sorrisos mais abertos e sinceros que havia visto, disse-me
que não sabia e que o melhor era não saber. Que segundo tinha apurado, não se
tratava de nada ilegal, mas que tinha ouvido que era algo parecido com pipocas
ou azeitonas, que quando se experimentava um, só com muito custo se conseguia
parar e que havia mesmo casos extremos de overdose que levavam à morte. Por
isso, preferia levar a sua vida de funcionária ignorante e limitar-se a fazer
seguir as encomendas enquanto ouvia música pop no seu leitor de mp3 e ia
petiscando umas bolachas de chocolate com pepitas de chocolate.
Não havia nenhuma Loja do Nada na
região e todas as pessoas com que conversei, que viviam nas imediações da
Fábrica, sabiam tanto como eu. Aparentemente todas partilhavam da opinião da
empregada baixinha de ar feliz que tinha conhecido e com a qual falara. Uns
diziam que tinham ouvido que era semelhante ao plástico bolha, que quando se
rebenta uma bolhinha de ar se tem que continuar até POP, POP tudo e que o
melhor era não fazer como o gato.
Mais tarde, fui ao site da
Fábrica do Nada, tentar fazer uma encomenda, selecionei algumas das referências
que tinha visto, carreguei em OK, coloquei a minha morada, OK, nada de
Referencias de Pagamento, nada de preços, achei estranho mas continuei a
preencher todos os campos necessários, OK novamente e depois apareceu uma
janela a dizer: QUER CONTINUAR; eu OK; TEM MESMO A CERTEZA QUE QUER CONTINUAR;
eu ri e pensei: que raio de estratégia de negócio; OK; OK; A sua encomenda
chega em 3, 2, 1 e tocam à porta. - Que eficiência! Pensei. Abri, levei a
carteira para poder pagar, mas a encomenda estava sozinha no chão e nada de
carrinha, nada de homens de entrega. Entrei, fechei a porta e fui para a sala.
Comecei por abrir o pacote calmamente, mas eram tantas camadas, tantos invólucros
que acabei por rasgar o embrulho como uma criança no dia de Natal.
O último celofane tinha escrito
em letras garrafais: TEM MESMO, MESMO, MESMO, MESMO A CERTEZA. Tinha mesmo,
mesmo, mesmo todos estes MESMO escritos. Sem pensar, rasguei-o e finalmente vi.
Encomendei o P1, o P2 e o P6. A consistência era parecida ao suspiro, derreteram-se
na boca e foram parar diretamente à minha cabeça. Eram pensamentos em forma de boomerang.
Pensamentos que vão e veêm, que tanto nos convencem que são essenciais e os
mais acertados, como no minuto a seguir nos convencem do contrário. Mas que nos
mantêm numa maratona incansável. Pensamentos que corroem o nosso cérebro e
formam labirintos de onde é impossível escaparem. E eu fiquei a assistir de
fora para dentro, como se estivesse a fazer zapping, grudada. E eu já tinha
visitado o site da Fábrica do Nada, mas entretanto tinha-me esquecido, tinha
encomendado o P53- Fábrica do Nada - Boomerang. A minha consciência era um
suspiro.